Voltar a escrever para outros olhos é insistência

Voltar a escrever para outros olhos é insistência

Notícias da minha bolha: sabático social a bordo da coronacoaster

Insistir na escrita para alimentar a capacidade de imaginar possibilidades diferentes de estar no mundo: é assim que volto a ter um blog, retomando essa brincadeira despretensiosa iniciada há sete anos com o Pronoia Tradutória.
 
O momento não poderia ser mais oportuno: tempos pandêmicos vivendo em um Brasil que tem orgulho de sua própria estupidez.
 

Sabático social

Comecei a praticar o distanciamento físico em meados de março, logo após voltar de um final de semana em Búzios. Agora, rumo ao nono mês nesse esquema (que ano é hoje?), consigo sorrir e pensar que valeu a pena ficar enrugada de tanto nadar de uma praia à outra, alimentando a alma de mar para aguentar a solidez torpe do lockdown voluntário (e incompreendido, e escarnecido).
 
No início da pandemia, mergulhei no excesso de trabalho e de ocupação para ficar propositalmente acabada. A exaustão, para mim, é a forma mais natural de negação e, pelo menos, não machuca ninguém (a não ser eu mesma).
 
Porém, não há saúde que aguente um ritmo insustentável de tarefas. Aos poucos, com muitas sessões de terapia, conversas com familiares e amigos queridos, fui apaziguando o espírito.
 
A prática religiosamente diária de meditação e yoga também fizeram toda a diferença para eu me aterrar em mim mesma. Quando dei por mim, já estava boiando com tranquilidade (e até me reconhecendo feliz) nas águas da resignação: isso também vai passar, só não sabemos quando nem como.
 
Sigo firme no distanciamento social porque posso e porque acredito que essa ainda é a melhor opção para minimizar os riscos inerentes à pandemia, associada ao uso de máscara. Para dourar a pílula, encaro o momento como um “sabático social”: forçada a ficar longe das pessoas (e, por vezes, adorando fazer isso, não nego), volto minha atenção para mim, para as minhas coisas, e me encaro de frente. Há dias bons, há dias ruins e tudo bem.
 

“Novo normal”? Tá mais para o velho anormal

Aqui na terrinha, o momento que vivemos escancara problemas profundos que muitos preferem fingir que não existem. O velho anormal – uma sociedade em que a maioria da população não tem suas necessidades mínimas e básicas atendidas para viver uma vida digna, temperada com doses cavalares de racismo estrutural e institucional, machismo e desigualdade social – desfila a céu aberto.

Créditos: @legalduda
A pandemia também chegou para agravar a epidemia cognitiva que o país sofre há alguns anos. Fake news, excesso de acesso a (des)informação a qualquer hora e a popularização de discursos de ódio disfarçados de “essa é a minha opinião” seguem abrindo feridas graves na tessitura social.
 
No meio disso tudo, eu, enquanto historiadora e comunicadora, me pego pensando na responsabilidade que tenho como profissional que trabalha com palavras e narrativas em meio a essa guerra de, justamente, palavras e narrativas. É uma batalha traiçoeira que, por vezes, me deixa impotente.
 
Como não há solução simples e rápida para problemas complexos, sigo com o meu trabalho de formiguinha, direcionando a minha atenção e jogando luz para onde acredito que há pulsão de vida.
 
Minha esperança no mundo pós-covidiano é que não dá para “desver” certas coisas que foram testemunhadas por tanta gente ao mesmo tempo. As mudanças seguem acontecendo em velocidades, muitas vezes, insuficientes, mas seguem. Amanhã vai ser outro dia.
 

O dia a dia abordo da coronacoaster

Felizmente, os impactos da pandemia na minha vida foram leves. Falando do alto dos meus privilégios, estou saudável e vivendo dias bons em um lar confortável, repleto de amor e cumplicidade com o companheiro com quem escolhi dividir a vida.
 
Como uma pequena empresária que faz home office há oito anos, meu trabalho foi pouco afetado; o volume de demanda diminuiu, mas não zerou. O que realmente mudou por aqui foram as funções dos cômodos de casa: abri mão do meu escritório para que meu parceiro (musicista) pudesse trabalhar remotamente com um ambiente acústico mais fácil de controlar e isolar.
 
Em contrapartida, minha mesa de trabalho foi para a sala, o principal cômodo do nosso apartamento. A adaptação foi rápida e bem-vinda: encarei tudo como uma chance de manter a casa mais organizada (músicos colecionam muitos cabos e equipamentos, acreditem em mim) e de, finalmente, transformar o meu lar em uma filial da floresta amazônica.
No aspecto mental e emocional, a máxima “coronacoaster” me serve como uma luva. Há dias bons, divertidos até; e há dias borocoxôs que só. Lá em março, passei longos dias completamente disfuncional, chorando muito e com insônia. Depois, estabilizei com a ajuda de terapia, yoga, meditação, homeopatia e florais.
 
Também parei de acompanhar assiduamente as notícias para ser movida por outros sentimentos que não apenas a raiva. Saber de colegas e amigos que perderam pessoas queridas para o coronavírus segue sendo um gatilho que dispara faíscas de pânico no peito quando penso nos meus. Para evitar a espiral de desespero, respiro fundo e procuro me fincar no agora, vivendo um dia de cada vez, resignada, finalmente, em focar a minha atenção no presente.
 

E o que temos para hoje?

 
Para hoje temos a chance de perder a mania de planejar excessivamente os dias. Desisti de planejar viagens, encontros e eventos “para quando tudo isso passar” para evitar a frustração. O máximo de planejamento que rola aqui é conferir o que tem na dispensa e na geladeira para saber quando e o quê pedir no mercado.
 
Para hoje temos o reforço de hábitos pré-corona: higiene das redes sociais (slow media), voltar a ler (e cheirar) livros, voltar a escrever e a estudar assuntos que me emocionam. E também temos novas formas de se fazer presente, encomendando comida para parentes e amigos, e ficando emocionada quando ganho um pão acompanhado de um bilhete carinhoso de alguém que amo.

Slow blogging

A blogueira Nátaly Neri gravou este vídeo certeiro sobre o excesso de velocidade e de dados que tornam o estar na internet uma experiência avassaladora, seja criando ou consumindo conteúdo.

Fica aqui o convite para assistir ao vídeo e refletir: faz sentido toda essa pressa? A gente consegue realmente aprender alguma coisa nessa correria toda?

Para hoje temos saudades em todos os tamanhos e formatos. Saudades do cheiro do meu pai. Saudades de correr atrás do andamento frenético do mestre de bateria da escola de samba que me acolheu como ritmista. Saudades de correr atrás do ônibus 638 para ir visitar a minha família. Saudades do meu boteco preferido e até da sua higiene duvidosa. Saudades do mar.
 
No final das contas, o que temos para hoje sempre foi o hoje. A gente que só se deu conta disso agora. Lição finalmente aprendida.

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