O trabalho remoto é libertador?

O trabalho remoto é libertador?

Depende da mentalidade que você tem em relação ao trabalho

Prestes a completar um ano em “modo pandemia”, com o futuro incerto (apesar do vislumbre de vacinação no fim do túnel) e o trabalho remoto entrincheirado na rotina doméstica de tantos, fico relembrando a Carolina de sete anos atrás, deslumbrada em ser nômade digital, trabalhando remotamente de um coworking em Buenos Aires.
 
Outra Carolina, sem dúvidas, bem como outra mentalidade, que hoje pergunta: ainda cabe discutir se trabalhar de qualquer lugar é, de fato, libertador?
 
Se mudarmos de mentalidade, eu diria que sim.
 

Vantagens (teóricas) do trabalho remoto de casa

A pandemia acelerou a adoção do modo de trabalho remoto e virou a vida de muita gente de cabeça para baixo. A adaptação normalmente leva tempo, ainda mais sob a ameaça do coronavírus. No entanto, não há como negar que existem vantagens:

  • Você não perde tempo nem gasta dinheiro com o deslocamento para o trabalho.
  • Você ganha mais horas no dia.
  • Você faz seu expediente (se for autônoma).
  • Você pode trabalhar com menos distrações.
Só que todas essas vantagens, na prática e com a mentalidade que estamos acostumados a ter, podem escorregar para uma lista de “poréns” não muito vantajosos:
  • Você se desloca menos, mexe menos o corpo e corre o risco de flertar com um estilo de vida mais sedentário, impactando a sua saúde.
  • Você economiza o dinheiro do deslocamento, mas gasta em outras necessidades. A conta de luz, por exemplo, é a primeira a aumentar com mais gente passando mais tempo em casa, isso sem falar nas compras de mercado e pedidos de delivery.
  • Você ganha mais horas no dia para… descansar? Ou preenchê-las com mais afazeres?
  • Você faz seu expediente e corre o risco de não saber quando ele começa ou quando ele termina justamente pela falta de hábito em ter esse nível de autonomia para decidir o que fazer com o seu tempo.
  • Sua casa tem fontes de distrações mais fortes, irresistíveis e/ou incontroláveis (pessoas que moram com você, barulho da vizinhança, Netflix, tarefas domésticas)
Assim, penso que o trabalho remoto é vantajoso se houver condições mentais (e materiais) básicas para ele ser exercido sem tantos prejuízos. E isso é difícil em níveis diferentes para contextos de vida diferentes, mas que são atravessados pelo mesmo “problema operacional”: o paradigma da produtividade para subsistir e sobreviver — afinal, os boletos não param de chegar.
 
Se, por um lado, muitas pessoas sequer desfrutam de condições materiais para trabalhar remotamente numa boa, quem as tem também não está acostumado a questionar esse paradigma a ponto de tentar driblá-lo minimamente — ou nem pensa nisso e entende esse modo de vida atropelado como “natural”.
 

O expediente sem fim

A hiperconexão proporcionada pelas tecnologias é uma faca de dois gumes: ela viabilizou o trabalho remoto, mas também inaugurou uma nova etiqueta rapidamente incorporada ao nosso comportamento por alimentar o sistema de recompensa cerebral: a reatividade imediata (e hiperbólica — ou você ama ou odeia), muito propagada pelas redes sociais.
 
Lembro que, em um passado não muito distante, as pessoas não ligavam para a casa das outras depois de um certo horário para não atrapalhar o descanso. Hoje, a gente já opera no automático: preciso perguntar alguma coisa para fulana, já envio uma mensagem no WhatsApp para ela, não importa o horário. Funciona feito uma descarga mental, já que temos certeza de que não vamos lembrar de tudo o que pensamos e queremos falar com as pessoas devido à sobrecarga cognitiva padrão da nossa época. E a fulana que lute para ignorar a notificação que pipocou na tela do celular às 23h47.
 
Esse comportamento acentuado pelas redes sociais reativas estimula a gente a acelerar todos os processos da nossa rotina. Só que certas tarefas de trabalho levam, sim, mais tempo para serem realizadas da melhor maneira possível. Viciados em não ter paciência para esperar, pulamos para a próxima tarefa da lista de afazeres, e para a próxima e para a próxima. Se não tem mais tarefa de trabalho, catamos a próxima tarefa doméstica dando sopa — isso se ela já não começou a ser realizada entre uma tarefa de trabalho e outra.
 
É desgastante, eu sei, ainda mais com a maioria das interações se dando por intermédio de telas. Cansa e não é pouco, mas não conseguimos parar: queremos resolver tudo logo para ter paz. Só que esse “tudo” se acumula o tempo todo, pois as tarefas nunca têm fim na cabeça de quem precisa produzir para sobreviver e/ou porque gosta e/ou porque precisa fugir da realidade — quem nunca se sobrecarregou de afazeres desde que essa pandemia começou só para não ter que lidar com o caos que estamos vivendo?
 
Trocando em miúdos, se antes já era difícil, o trabalho remoto imposto pela pandemia ficou ainda mais desafiador ao se fundir com esse comportamento reativo que nos leva a maratonar tarefas em um modo de vida que nos socializa para valorizarmos a ocupação e desprezarmos o ócio e o descanso.
Se você tem como separar os espaços da casa dedicados a trabalhar e relaxar, é menos difícil sucumbir a expedientes infinitos. Veja bem, digo “menos difícil” porque não é fácil mudar a mentalidade que rege a nossa vida ocidental capitalista. Na verdade, virar essa chave é um esforço ativo, consciente e ininterrupto de botar limites.
 
A falta de limites, por sua vez, é a porta de entrada para drogas mais pesadas: culto à ocupação, infinitas horas de trabalho que não rendem, esgotamento, burnout… Um dia, a conta chega na caixa postal da saúde. A minha chegou. Não recomendo.

Não romantizar o trabalho: atalhos para mais autonomia

Seja de casa, num coworking ou viajando vacinada por aí, o trabalho remoto na pandemia nos colocou mais atentas às formas como gastamos nosso tempo de vida.
 
O perigo de conjugar “trabalho” e “não trabalho” sem impor limites é virarmos ainda mais reféns do primeiro. É triste perceber que o modo remoto não liberta porque a noção de trabalho dentro da metafísica neoliberal, em si, não liberta: nosso estilo de vida é completamente colonizado pelo paradigma da produtividade a ponto de sequer estranharmos o que está acontecendo conosco. Conhecem a historinha do sapo na panela de água fervente? Qualquer semelhança entre o sapo e a gente não é mera coincidência.
 
Mas, se você se propõe a esse estranhamento, minha sugestão é:
  • Tente entender as engrenagens macro e micro que aprisionam você a uma lógica de produção 24/7.
  • Aprenda a trabalhar com inteligência, ou seja, tentando minimizar as distrações (chamamos isso de foco) e cronometrando afazeres para saber o tempo que você realmente leva para concluir tarefas. Ter essa noção ajuda a não criar expectativas de dar conta de um volume de coisas que simplesmente não cabem no seu dia.
  • Insista em aprender a desacelerar e/ou a produzir em velocidade humana, razoável e sustentável de ser mantida por mais tempo.
Essas três iniciativas se conjugam e se retroalimentam num fluxo eterno e contínuo, que ora é mais fácil, ora dificílimo, a depender do seu momento de vida. Insista.

Atalhos para a autonomia: dicas e sugestões

📢 Para quem quiser insistir comigo, mergulharei mais a fundo nos atalhos para a autonomia no artigo do próximo mês. Assine a newsletter para receber o texto no sossego da sua caixa de entrada lá pela segunda quinzena de fevereiro!
Creio que essas iniciativas têm mais chances de proporcionar alguma autonomia, porque elas evitam bater na tecla que romantiza o trabalho remoto como fonte garantida de liberdade. Autonomia esta que, melhor ainda, abre espaço mental para pensar sobre as condições necessárias para o trabalho remoto acontecer em determinados momento da nossa vida sem nos prejudicar.

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