O mito das oito horas de trabalho

O mito das oito horas de trabalho

“Expediente normal” não é sinônimo de “horas produtivas”

Viver em pandemia me obrigou a realmente entender o tempo que as coisas levam, sejam as tarefas domésticas, sejam os projetos de tradução e escrita que toco  ou seja até mesmo o meu lazer e descanso, que precisam de um tempo próprio, que não seja os minutos que sobram entre um compromisso de trabalho e outro.

Aceitei essa “obrigação” depois de me frustrar com expectativas de produtividade inalcançáveis. Assumi um compromisso comigo mesma de ser mais honesta com os meus limites físicos e mentais para não adoecer. De quebra, abandonei o sonho adolescente de ter um vira-tempo.

Ciente de que esse compromisso é um esforço cotidiano e para a vida toda, tenho lançado mão de várias táticas de organização e gerenciamento de tarefas combinadas com muita auto-observação. Desse jeito, finco os pés na minha realidade e minimizo as chances de me sentir um fracasso todos os dias (que era basicamente como eu me sentia a maior parte do tempo até ter um ataque de pânico em 2018).
 
Por mais que eu critique e tente pensar outras formas de estar aqui, o ritmo da vida de quem paga boletos é largamente tangenciado pelo trabalho. Portanto, mergulhei nessa sanha organizacional para domesticar o meu tempo de trabalho para que ele não contaminasse (ou contaminasse menos) as demais horas do meu dia.
 

Oito horas de trabalho bem realizado: eu conto ou vocês contam…

…. que isso não existe?

Eu trabalhei como tradutora com carteira assinada nos dois primeiros anos da minha carreira. À época, não demorei muito para sacar que dedicar oito horas do meu dia para trabalhar dentro da empresa não era garantia de produtividade, muito menos de qualidade.
 
Quando passei a trabalhar por conta própria, de casa, reproduzi esse padrão e me mantinha ocupada por muitas horas do meu dia – algo normal para quem decidiu ter o próprio negócio e percebe que, como pequena empresária, terá que assumir muitas funções até ter fôlego financeiro para terceirizar aquilo que não consegue dar conta sozinha. Hoje, olho para trás e vejo que repetir a lógica produtivista era natural para mim, pois não tinha experiência, muito menos vocabulário e repertório de argumentos para me convencer a fazer diferente.
 
Depois que adoeci e entendi a urgência de questionar esse modo de viver sempre ocupado, comecei a ter um olhar mais crítico sobre com o que eu gasto meu tempo e energia. Também passei a me observar para entender como eu me sentia a cada dia e se isso tinha alguma influência na forma como eu trabalhava. E, é claro, resolvi estudar e mergulhar mais fundo no assunto.
 

Nessa embalo, uma ficha importante que caiu para mim é que não existe gerenciar tempo:

“Não dá para gerenciar o tempo, ele nunca muda. O que você pode gerenciar são as atividades que escolhe realizar no tempo. (…) e você nunca conseguirá fazer tudo o que precisa, quer ou deveria fazer.”

Essa citação é uma tradução livre do depoimento de Terry Monaghan, especialista em desempenho e produtividade, entrevistada para o livro Sobrecarregados, uma leitura que já indiquei por aqui.
 
Partindo desse pressuposto, se não posso domesticar o tempo, pois ele está lá, passando, quer eu queira ou não, o que está sob o meu controle são as atividades com as quais me engajo nessa “esteira temporal”. Optei, assim, por me informar sobre técnicas de gerenciamento de tarefas, colocando-as em prática para entender qual melhor funcionava comigo.
 
De início, instalei o RescueTime gratuitamente para quantificar meu tempo de tela no computador. No celular, configurei os parâmetros de saúde e bem-estar para limitar o tempo que gasto na distração vazia das redes sociais. Dessas duas formas, passei a entender melhor como eu gastava as horas do meu dia. Gerir tarefas ajuda a descobrir quais atividades fagocitam o nosso tempo sem a gente se dar conta.
 
Algumas conclusões baseadas em evidências colhidas nesse experimento que é ser eu mesma trabalhando de casa como autônoma:
  • Como suspeitava desde o princípio, eu não trabalho durante oito horas. Eu posso me ocupar até por mais horas, mas escrever ou traduzir com qualidade, não.
  • Segundo os gráficos do RescueTime, via de regra, eu gasto em torno de cinco a seis horas no computador: 4,5 horas produzindo e sendo eficiente; 1 hora/1,5 hora lidando com burocracias (responder e-mails, interagir com apps de mensagens, lidar com as finanças da empresa) ou procrastinando.
  • Comprovei, para a minha realidade, que expediente é uma coisa e tempo de produção é outra.
Portanto, o lema por aqui é: vou trabalhar as horas suficientes para dar conta do que preciso fazer hoje.
 

Táticas para honrar meu lema

Deixo aqui os hábitos que experimentei e incorporei ao longo de oito anos trabalhando de casa:
  • Rotina matinal → criei várias versões de como começo os meus dias: acordar, preparar café e meditar; acordar, entrar numa ducha gelada (para forçar a inicialização do sistema!) e tomar café; acordar, fazer o treino funcional na varanda, tomar café e sentar para escrever. São variações que combino e descombino seguindo a minha vontade, disposição e estado mental.
  • Blocos de tempo → aprendi a reunir atividades de contexto semelhante em blocos de tempo (time blocking), otimizando a realização e a conclusão dessas tarefas sem gerar aquela ansiedade de ter uma lista imensa para dar conta no dia (e falhar miseravelmente). Os blocos de tempo funcionam para mim porque mantenho meu foco em uma tarefa-mestre por vez. Isso evita que eu alterne várias vezes o que eu estou fazendo, picotando a minha atenção e queimando minha energia muito mais rápido.

📢 Blocos de tempo e pulsação ("pulse"), a dobradinha que é sucesso

Os blocos de tempo se alinham à pulsação que dita o funcionamento do corpo humano. De acordo com Tony Schwartz (outro entrevistado do livro Sobrecarregados), somos “projetados para pulsar, ou seja, alternar entre gasto e recuperação de energia (...), entre períodos de foco intensificado e períodos de repouso”.

Destaco aqui a palavra repouso: a ciência comprova que a falta de momentos de descanso afeta a nossa capacidade de atenção e aprendizado. Em outras palavras, maratonar tarefas faz você chegar mais rápido à estafa.
  • Cronômetro de tarefas de trabalho → comecei a usar o Toggl (versão gratuita) para contabilizar o tempo que gasto em tarefas de trabalho. Isso me ajudou a entender com mais clareza quantas palavras traduzo ou escrevo por hora, como também a traçar um padrão de produtividade que uso como base para orçamentos. O app também envia um relatório semanal das suas horas de trabalho, o que é ótimo para acompanhar o volume de tempo que você gastou fazendo x, y ou z. Gosto de dar uma olhada nos meus relatórios e relacioná-los com o meu estado geral daquela semana: eu estava de TPM? Tive alguma crise de ansiedade ou passei dias mais tranquilos dentro da minha cachola? E a qualidade do meu sono? Como me alimentei durante esses dias? A auto-observação vem bem a calhar nessa análise.

Técnica Pomodoro

A técnica Pomodoro é antiga, quase todo mundo conhece. Lanço mão dela com frequência, principalmente nos dias em que estou mais distraída.

O alarme apitando de 25 em 25 minutos também ajuda a lembrar de levantar e esticar as pernas — trabalhar com foco pode engessar a gente numa mesma posição por mais tempo que o recomendável para a nossa saúde ergonômica!

 

  • Antes de fechar a firma, 5 minutinhos de planejamento → Passei a finalizar um dia de trabalho planejando rapidamente o expediente do dia seguinte, usando os blocos de tempo.
  • Setorizar a casa → minha mesa de trabalho fica na sala, mas a batizei como território proibido para quando não estou trabalhando. Sigo essa regra à risca para ajudar o meu cérebro a desligar do “modo produção”. Em compensação, meu quarto não tem mais nenhuma tela que possa interromper a paz que só a desconexão traz. A varanda é o espaço de lazer (ler, pegar sol, escrever e participar de videochamadas com família e amigos).

“Fazer menos para fazer o suficiente”

E o suficiente, na atual conjuntura, já é muito. Ou também, como li neste post outro dia, precisamos “aceitar o nosso relógio”.

E isso é um baita desafio! É remar contra a maré de séculos de socialização na lógica da ocupação que respinga na gente desde pequenas: observamos adultos atarefados, absorvemos esse comportamento como o correto e o associamos com outras ideias (de sucesso, por exemplo) que nos convencem de que fazer muito, o tempo todo, é positivo  e que o contrário disso (o não fazer, o ócio) é nocivo, pecaminoso, coisa de gente que não presta (”va-ga-bun-dos!”).

Esse discurso nos formata para o burnout e nos afasta da manutenção e da reprodução da nossa vida, que envolvem atividades básicas: cuidar do nosso corpo (nossa morada), cuidar da casa (o local onde vivemos), cuidar da nossa alimentação (cozinhar).
 
O sistema em que vivemos nos hiperocupa para que a gente acredite que não temos tempo para fazer o básico. Daí é só trabalhar um pouco mais para pagar outra pessoa para fazer as coisas que não estamos conseguindo fazer. Assim, na teoria, temos mais tempo para fazer o que quiser. Mas será que a gente faz o que quiser mesmo com mais tempo disponível ou só inventamos novas ocupações?
 
Aceitar o meu relógio é reconhecer que o ritmo corrido que embala o nosso cotidiano capitalista ocidental é uma violência, manifestada em um espectro que segue os atravessamentos de cor, classe e gênero. Tento, portanto, pensar em um conceito de “produtividade humanizada” (se é que isso não é um contrassenso), no qual aceito, com cada vez menos resistência, que meu dia comporta menos atividades do que eu fui socializada a acreditar.
 
Faço, entretanto, uma ressalva: além da escolha de não ter filhos no momento, a minha experiência de vida é repleta de privilégios estruturais, o que me faz ser 100% dona e proprietária do meu tempo. Deixo aqui o convite para você, pessoa que não sou eu, pelo menos pensar em como tornar a produtividade humanizada algo possível dentro da sua realidade. Nessa equação, vale também incluir que viver envolve idas e vindas, momentos mais propícios a um desacelerar, outros menos. Afinal, a impermanência é a única constante da vida, lembra?

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