Formação para quê?
30 de setembro de 2020 2021-09-17 9:57Formação para quê?
Formação para quê?
O interminável prato de arroz com feijão
O discurso de empreender a si mesmo cresceu muito nos últimos anos, acompanhado de um certo desprezo pela formação acadêmica simultâneo ao sucateamento da educação pública.
Além disso, constatamos que não precisamos de diploma universitário para fazer várias coisas, ganhar dinheiro para sobreviver e, quem sabe, ascender socialmente. Mas estar ciente desses fatos é o suficiente para ignorar a importância de uma formação, seja ela adquirida em universidade ou em cursos livres?
Em busca de outra profissão
Eu estava no meio da graduação em História quando cogitei acrescentar mais uma profissão à minha carreira. Esse impulso veio tanto pela falta de perspectiva em viver como acadêmica em um país que insiste em pisotear a própria história (e demonizar aqueles que insistem em resgatá-la), quanto pela constatação de que eu gostava de me dedicar a outras atividades correlatas às ciências sociais.
Assim, entre uma crise existencial e outra que uma faculdade de Humanas proporciona, procurei amparo naquilo que adorava fazer desde que me entendia por gente: ler e escrever.
Lembro nitidamente de ficar tamborilando a lombada dos livros na minha estante, agitada pensando no quê fazer, quando a ficha caiu assim que meus dedos acarinharam minha coleção do Harry Potter: e se eu começasse a traduzir?

Enfeitiçada por Lia Wyler
A figura do tradutor surgiu para mim com Lia Wyler: como reclamei de sua “demora” para liberar os livros da minha série favorita!
Anos depois, já formada em Hogwarts e desanimada com a faculdade, relembrei da minha impaciência adolescente e resolvi dar uma chance à tradução.
De alguma forma, Lia Wyler me enfeitiçou e cá estou: tradutora, realizada e feliz.
Diversificando saberes interligados
Joguei na internet “curso de tradução” e entrei em contato com os resultados que apareceram na busca.
Não sei se foi por conta da minha insegurança ou o quê, eu JAMAIS achei que podia começar a traduzir sem ter o mínimo de formação na área. Parti do pressuposto que “tradutor” era uma profissão que tinha suas estratégias e meandros, e eu, como leiga, precisaria conhecer o bê-á-bá para trilhar essa carreira.
E mesmo com o diploma de tradutora na mão, eu ainda não me sentia totalmente preparada para atuar na profissão porque eu era inexperiente. Conhecia a teoria e a prática simulada pelos exercícios do curso, mas ainda não tinha vivido a realidade do cotidiano de uma tradutora profissional.
Acumulando experiências
Catei um emprego de carteira assinada em uma agência de tradução e lá fiquei por quase três anos, pegando no tranco da profissão. Hoje, entendo essa experiência de trabalho como parte fundamental da minha formação, que é, por excelência, continuada.
Faz dez anos que estou me formando “tradutora e intérprete” sendo a dona do meu próprio negócio. Já não como tanta mosca como antes, mas ainda tenho muito arroz com feijão no prato.
Formação é fazer curso, livre ou universitário, mas não é só fazer curso. Formação também é praticar. Praticar, ouvir e conviver com quem já capina o jardim tradutório há mais tempo que você. Pode envolver um grau de autodidatismo, mas também carece de altas doses de humildade para saber quando e como pedir ajuda.
E é só quando essa ficha da formação ampla e continuada cai que a gente entende que não faz muito sentido ficar querendo entender o mercado se você ainda não tem o básico para circular nele.
Acho louvável quando me procuram pedindo dicas para começar na profissão, mas fico um pouco preocupada quando a pessoa já pula para “Como é o mercado? Quanto posso cobrar?” — você sabe quanto vale o seu trabalho para saber cobrar por ele? Melhor, você tem coragem de cobrar alguém pelo seu trabalho de tradução sem jamais ter traduzido na vida?
Contra-argumentar com essas questões não é manha de veterana querendo esconder quanto cobra dos outros — e quem assim julga deixa claro para todo mundo que acabou de chegar e não faz a menor ideia do que é viver de tradução, com orçamentos variando de cliente para cliente, de projeto para projeto.
Pelo contrário, é uma preocupação genuína, pois quem chegou primeiro no parquinho da tradução sabe o que é mandar mal logo na largada da brincadeira e ficar com aquela fama de desagradável entre os colegas (que podem muito bem ser seus clientes de amanhã).
Todo início de carreira exige cautela e paciência para não entrar torto no famigerado mercado.
Busque formação para tropeçar menos no caminho das pedras, de coração e ouvido abertos, reconhecendo a sua ignorância (do verbo “ignorar”, vulgo desconhecer, não saber do que se trata), para aprender mais, melhor e mais rápido.
Como criar sua própria experiência tradutória
Quanto mais como, mais arroz e feijão aparece no prato
Como disse ali em cima, sigo me formando como tradutora e intérprete desde 2010. Escolher o caminho da tradução como profissão (e não como bico) me colocou em contato intenso com essa atividade, que expandi ao entendê-la como uma engrenagem da ciência da comunicação.
Dessa forma, além de fazer cursos específicos do setor (reciclagem de português, oficina sobre ferramentas de tradução e afins), também passei a frequentar espaços de ensino-aprendizagem nos quais eu era a única tradutora da turma.
De 2018 para cá, já fiz cursos de webwriting, marketing de conteúdo, gestão de mídias sociais, SEO, copywriting, e atualmente namoro a ideia de estudar UX Writing com mais afinco.
Na foto à esquerda, Turma de Marketing de Conteúdo | Lapa Comunicação, setembro de 2019
Exercitar a minha veia de cientista social/historiadora é assumir que nada funciona isoladamente e que tudo está conectado. Coloco-me, pois, atenta ao constante diálogo entre as minhas profissões e outras áreas de conhecimento, ampliando o meu leque de possibilidades de atuação.
Hoje, não dissocio mais as coisas que faço. Sou muitas ôras: escritora, historiadora, tradutora e intérprete de conferências — para quebrar a rima e a piada ruim — e ao manter todas essas atividades interconectadas, também me permito o alívio de não apagar as múltiplas identidades que habitam em mim.
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