O culto à ocupação: me inclua fora dessa​

O culto à ocupação: me inclua fora dessa

Passe a trabalhar nas horas vagas

No início da pandemia, trabalhar por longas horas foi a minha grande distração. Por mais que eu já tenha aprendido a operar em um esquema mais equilibrado, frente ao caos covidiano, não hesitei em escorregar de volta aos hábitos antigos e nocivos.
 
Após algumas semanas levando os dias em um ritmo exaustivo e com o distanciamento social já se enraizando no meu cotidiano, meu corpo e mente não só ficaram cansados, como também passei a ter uma percepção mais aguçada do tempo que as coisas realmente levam para serem realizadas.
 
O fato é que trabalhar, cuidar da casa e de mim são fatores que sempre estiveram nessa equação da vida equilibrada, independentemente de pandemia, mas que eu nunca conseguia dar conta sem ficar perturbada, achando que estou fazendo pouco ou que não estou me dedicando o suficiente para essas tarefas.
 
Além disso, a perspectiva de viver no casulo por muitos meses reacendeu o medo de ficar com aquela sensação de nunca sair do trabalho, um fantasma que me assombra desde que passei a fazer home office.
 
Ter que lidar comigo mesma, com as minhas coisas e questões sem poder “fugir” no convívio social virou mais que uma deixa para experimentar novos métodos de gerenciamento de tarefas; virou, pois, um alerta, dessa vez mais urgente, de que era preciso mudar a mentalidade.
 

Virando a chave

A ficha caiu (ou melhor, despencou) em uma leitura descompromissada de Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros, obra de Luiz Antonio Simas, historiador e escritor que admiro muito.
 
Em um dos contos do livro, um comerciante do mercado de Oyó, orientado por Orunmilá, foi consultar Exu para saber qual seria a melhor coisa para fazer nas horas vagas, que lhe eram tão escassas. Exu responde (grifos meus):
— Passe a trabalhar nas horas vagas.
O mercador se queixa: não faz sentido trabalhar nas horas vagas se era isso que ele já fazia nas horas ocupadas. Não seriam as horas vagas o tempo para se gastar com prazeres e lazeres?
 
Exu concorda, indo além: é isso o que temos que fazer na maior parte do nosso tempo…
— Passe a fazer isso nas horas em que você costuma trabalhar e trabalhe apenas nas horas que hoje são vagas. Foi isso que eu disse. Não entendeu, meu bom?
Escutaram o barulho da ficha caindo?
 
O recado do orixá vai ao encontro de outras recomendações baseadas em evidências, oferecidas por estudiosos de gestão de tempo, comportamento humano, lazer e trabalho. É o famigerado trabalhar com foco, sem distrações; é ser monotarefa.

Trabalhar apenas nas horas vagas, ou seja, na menor parcela de tempo do nosso dia, é fazê-lo com o mínimo de distrações para dar conta do que é preciso dar conta sem se exaurir para poder fazer o que bem quiser com o restante do seu tempo.
 
Mas, por que não conseguimos engatar nesse hábito?
 

A lógica produtivista e a incompreensão do lazer

Porque é difícil remar contra a maré do produtivismo.
“A lição de Exu – trabalhe apenas nos tempos vagos – soa como um despropósito dentro da lógica produtivista das sociedades atuais.” (Simas, L. A.)
Veja, na nossa sociedade capitalista, o valor das pessoas está enraizado na capacidade que elas têm de produzir; são os corpos-máquinas (ou só máquinas) que precisam render, bater metas, passar por cima do que for preciso para atingir um patamar inatingível, já que o sarrafo continua sempre subindo, subindo…
 
Não produzir é entendido, consciente e inconscientemente, como desperdício de tempo, de vida, de espaço na Terra. Essa mentalidade coletiva gera crenças silenciosas nocivas, que nos mantêm presas à metafísica do padecer para merecer, laborar para encontrar sua dignidade e valor, como se trabalhar fosse a fonte única e exclusiva para uma vida feliz e com sentido.
 
Isso fica evidente nas pequenezas do cotidiano; repare: quantas vezes você pergunta “Tudo bem, fulana?” e a resposta é “Tudo, trabalhando muito”; “Tudo, tô exausta” e variações? Aliás, quantas vezes você não deu uma resposta dessas?
 
Chega a ser automático responder com alguma carga de negatividade, afinal, estar bem pode pegar mal e dar a entender que você é desleixada, preguiçosa ou “só quer sombra e água fresca” – como se fosse crime querer uma vida mansa!
 
Em seu livro Sobrecarregados: trabalho, amor e lazer quando ninguém tem tempo, a jornalista Brigid Schulte destaca, entre tantos outros problemas, que a sociedade contemporânea valoriza mais o trabalho do que o lazer por não compreender a função primordial que o último tem na qualidade de vida e nos relacionamentos humanos. Não é à toa que o lazer (que também deve ser lido como uma forma de prazer) é tantas vezes associado à culpa.
 
Trazendo a questão para Terra Brasilis, ficar à toa está entranhado historicamente no imaginário coletivo brasileiro como algo negativo. Lembram dos relatos feitos por colonizadores portugueses, afirmando que as pessoas escravizadas (indígenas ou africanas) eram preguiçosas por não quererem trabalhar desumanamente para eles? Ah, a colonização… De longe, o erro de português que mais me irrita.

A mostra VAIVÉM no CCBB RJ

📢 No recesso de Natal e Réveillon de 2019 para 2020, fui ver a mostra VAIVÉM no CCBB RJ. Como estava de férias, foi uma grata surpresa percorrer a exibição que reconta a história brasileira por meio da história das redes e seus usos. Por fim, no saguão do museu, a instalação "Rede Social", do coletivo Opa Vivará, foi a cereja do bolo para dar aquele nó gostoso na cachola e repensar, mais uma vez, por meio de qual mentalidade eu quero orientar os meus dias: a mentalidade da aceleração ou a mentalidade do tempo que as coisas (e eu!) precisam ter.
Se entendemos “lazer” como “horas vagas”, “tempo livre”, “fazer nada” e sinônimos, sua importância está justamente no despropósito de não produzir. Para Jenny Odell, autora de How To Do Nothing: Resisting The Attention Economy, o fazer nada está na ordem da manutenção e do cuidado, propostas que não compartilham do mesmo valor que a produtividade tem, comumente entendida como o ato de sempre “criar algo novo”.
Ser improdutivo, portanto, é necessário para a manutenção da vida, para estar bem, seja para voltar a produzir ou para seguir fazendo vários nadas. Nas palavras de Odell, “fazer nada” significa (grifos meus e tradução livre):
Proteger nossos espaços e nosso tempo para atividades e pensamentos não comerciais e não instrumentais; para manutenção, cuidado e convívio.
Fazer nada é também um ato político de rejeitar enxergar nossos dias como pacotes de “24 horas potencialmente monetizáveis em que cada indivíduo é considerado um empreendedor”, para citar Odell mais uma vez.
 
Doeu ler isso, né? Calma que vai doer mais:
 
“Em um cenário em que cada momento que passamos acordados se torna o tempo que usamos para ganhar a vida, e quando submetemos até o nosso lazer para ser avaliado numericamente por curtidas no Facebook e no Instagram, e ficamos verificando constantemente nosso desempenho como se estivéssemos acompanhando ações na bolsa, monitorando o desenvolvimento de nossa marca pessoal, o tempo se torna um recurso econômico que não conseguimos mais justificar em ser gasto com ‘nada’.”
 
Sem esse tempo vazio, fica difícil viver o momento presente, encarar a própria realidade e refletir sobre nossas vidas. Falar disso até pouco tempo atrás seria ser “tilelê” demais para alguns, mas acredito que a pandemia e a necessidade de distanciamento social deu um sacode em todo mundo também nesse quesito.
 
Afinal, será que queremos ficar para sempre assim, “condenados a viver em um ritmo de excesso de tarefas banal e sem objetivo”?
 

Busyness e a noção de sucesso

De acordo com Ann Burnett, professora de Comunicação e diretora do Programa de Estudo de Gênero e Mulheres na Universidade Estadual de Dakota do Norte, e entrevistada por Brigid Schulte em seu livro Sobrecarregados, estar ocupada (busyness) é um parâmetro de valorização das pessoas na sociedade acelerada em que vivemos. Estar ocupada nos dá um senso de importância e produtividade (nem sempre real) que também declaramos para os outros.
 
Ao mesmo tempo, “admitir que você tira tempo para si mesmo é o equivalente a uma demonstração de fraqueza”. É por isso que damos respostas automáticas que endossam essa eterna ocupação, essa escassez de tempo livre; afinal, não queremos ser vistas como preguiçosas inúteis, como também não queremos nos sentir culpadas por não aparentarmos viver dias repletos de tarefas e compromissos.
 
No final das contas, estamos competindo para sermos ocupadas: “é sobre demonstrar status. Se você é ocupado, é importante. (…) Viver ocupado não só se tornou um meio de vida, mas de glamour. Hoje, é um indicador de elevado status social” – quiçá, de sucesso.
 
Obcecadas com a ocupação, seguimos como ratinhas de laboratório correndo na roda de exercício, sem parar para tomar fôlego e questionar se a vida tem que ser assim o tempo todo.
 

Desacelerar para deixar de ser mera engrenagem

Após séculos nesse ritmo frenético, a humanidade e a ciência começam a se perguntar se viver e trabalhar sempre no combo aceleração + multitarefa faz sentido ou sequer é produtivo. E a resposta é um retumbante NÃO.

Pegando os argumentos de Brigid Schulte mais uma vez emprestado, neurocientistas do Yale Stress Center descobriram não só que essa sobrecarga é capaz de fisicamente encolher o nosso cérebro, mas que, ao desacelerar, nosso cérebro fica literalmente maior.

Paralelamente e alinhado com as pesquisas científicas, o movimento slow tem ganhado mais adeptos. Encabeçado pelo slow food, é uma tendência que se espalha em mais vertentes, propondo uma desaceleração da sociedade como um todo.
 
Embora louvável, a proposta ainda está muito distante da realidade da maioria da população mundial, que sobrevive precarizada e marginalizada. Para quebrar esse ciclo doentio de sobrecarga e excessos, é justamente essa maioria que também precisa poder desacelerar sem temer pela própria existência e subsistência, e não apenas quem acumula privilégios estruturais.
 
Nesse sentido, a ativista Tricia Hersey afirma que o repouso, particularmente o da população negra, é uma forma válida de resistência ao sistema capitalista-supremacista branco que aprisiona a todos (em diferentes intensidades, dada sua estrutura racializada) nessa eterna aceleração infrutífera e doente.
 
Fundadora do The Nap Ministry, a pesquisa e o trabalho de Hersey (também conhecida como a “Bispa da Soneca”) com oficinas e instalações artísticas são um convite a desprogramar a nossa mentalidade produtivista para criar espaço mental e emocional para imaginar novas formas de viver que sejam mais condizentes com a nossa humanidade.

Insistir nas brechas, disponíveis ou criadas

É sufocante ver como esse culto à ocupação funciona e se entranha em nossas mentes e corpos como algo normal e inescapável a ponto de existirem pesquisas científicas que busquem a fórmula para o “homem sem sono”, ou seja, um corpo apto a produzir 24 horas por dia, sete dias por semana.
 
De fato, desacelerar e poder se ocupar cada vez menos é um privilégio em uma sociedade ainda tão desigual; cogitar toda essa reflexão também: com todas as minhas necessidades básicas atendidas, tenho espaço mental suficiente para pensar além da “rodinha de rato”.
 
E é isso que o sistema quer: que ninguém tenha tempo ocioso para questioná-lo. Não é à toa que o nosso tempo e a nossa atenção são recursos inestimáveis e constantemente disputados: quando nos apropriamos deles, vislumbramos possibilidades de liberdade.
 
Esperar as condições ideais se concretizarem para desacelerar e desocupar não adianta. É preciso ter intenção e dedicação contínua em interromper o fluxo que nos coloca como engrenagens sempre a trabalhar, operar, funcionar. É assumir essa interrupção como rotina, como tentativas diárias de participar do sistema “do jeito errado”, minando a autoridade do jogo hegemônico e criando possibilidades de estar no mundo fora desse jogo.
 
É abrir brechas, ou aproveitar e alargar as já disponíveis, para experienciar o presente injetando a nossa energia em coisas que reverberam pulsão de vida, descolonizando o pensamento e o corpo para descobrir, ao nosso tempo, formas menos opressoras de estar aqui e, quem sabe, resgatar nossa capacidade de imaginar mundos melhores.

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