O método da insistência

O método da insistência

Possíveis atalhos para resistir ao culto à ocupação e à economia da atenção

Resistir ao culto à ocupação e não romantizar o trabalho, seja ele remoto ou não, é um esforço de construção de um imaginário favorável ao equilíbrio.
É, na essência, insistir em um novo modo de ser e estar, nadando contra uma correnteza praticamente irresistível.
 
Para que a insistência seja verbo que transforma, é preciso beber da fonte de sabedorias que resistiram (e resistem) a esse fluxo colonizador mental e material tão forte, mas tão forte que, por vezes, nos convence de sua originalidade. Como assim?
 
Ora, as práticas que estão sendo resgatadas com mais frequência desde o início da pandemia não são uma disrupção da indústria de wellness. São, sim, tecnologias ancestrais dos nossos povos originários e da sabedoria diaspórica. O que o sistema capitalista neoliberal faz é transformar absolutamente tudo em mercadoria, incluindo o nosso bem-estar.
 
Mas já parou para pensar que estar bem e em equilíbrio é algo mais inato a nós do que imaginamos? Nós desaprendemos a acessar esse estado à medida que somos socializados nesse sistema; agora, corremos atrás do prejuízo e pagamos caro, seja com a nossa saúde ou em produtos gourmetizados que camuflam hábitos simples e – pasmem! – gratuitos.
 
Seguir essa linha de pensamento significa combinar a prática diária com essas sabedorias e tecnologias, estudando suas origens, respeitando essa história e, de preferência, passando adiante para que a mudança ocorra para além da gente enquanto indivíduo.
 

Atalhos, dribles e tentativas

Compartilho aqui alguns “dribles” que tenho treinado para tentar viver melhor, principalmente dentro da minha cabeça. Não são regras infalíveis, não são soluções para todos os contextos de vida; são atalhos e tentativas que vou garimpando e deixo aqui para quem quiser se inspirar e experimentar.
 

“Preferir não”

Conheci a máxima preferir não ouvindo um episódio espetacular do podcast Benzina sobre o livro Bartleby, o escrivão e a ficção como antídoto.
 
A partir dessa escuta, mais do que dizer “não”, estou aprendendo a preferir não me colocar em situações de desconforto mental que se desdobram em emoções autodestrutivas. Isso vale para todas as esferas da vida, seja no âmbito profissional ou pessoal.
 
Preferir não é libertador.
 
É uma postura que dialoga diretamente com o refusal in-place ou standing apart que Jenny Odell propõe no livro How To Do Nothing (tradução livre):
“(…) quando o desejo de jogar tudo para o alto e ir embora se transforma num compromisso de viver em permanente rejeição e encontrar outros nesse espaço comum da rejeição. É resistir participando do jeito errado, que mina a autoridade do jogo hegemônico e cria possibilidades de estar no mundo fora desse jogo.”

Isso significa preferir não aceitar um projeto que não tem nada a ver comigo e que vai drenar minhas energias, impedindo que eu dedique meu tempo e minha atenção a outras áreas da minha profissão – considerando que todos os boletos estão em dia, claro!
 
Isso também significa preferir não engajar em conversas com pessoas que não estão na mesma página que eu em termos de percepção de realidade. É saber quando e como interagir.

Mantras

Ao sentar à mesa de trabalho para começar meu expediente, repito mentalmente para mim: eu vou passar o mínimo de tempo possível aqui para dar conta das minhas tarefas profissionais, fazendo o meu melhor.
 
Repetir isso me ajuda a resistir à tentação de garimpar meu valor em estar ocupada, um reflexo irracional e imperceptível que a maioria das pessoas tem – ou melhor, sofre.
 

Organizar períodos “out of office”

Seja para passar um final de semana ou feriado fora da cidade, para sair de férias ou simplesmente para tirar uma folga durante a semana, eu me preparo mentalmente e materialmente em algumas etapas.
 
O primeiro preparo é me lembrar constantemente de que está tudo bem não estar disponível para trabalho; que isso provavelmente significa que eu estou mais disponível para outras coisas tão (ou mais) importantes que o meu trabalho. Isso também não deixa de ser um mantra, que volta e meia tenho que retomar para não me afogar na culpa de estar experimentando o prazer de não ser produtiva.
 
O segundo preparo é organizar a minha agenda e avisar aos clientes que estarei indisponível com antecedência. Essa parte às vezes envolve um medo de estar abrindo mão de incríveis oportunidades de ganhar dinheiro misturado com o receio de decepcionar clientes por eu não estar acessível e prontíssima para aceitar projetos.
 
É aí que eu respiro fundo e volto para os valores que me movem: se um cliente me considerar descartável porque eu saí de férias, não faz sentido eu estar colaborando com ele, que quer contratar uma máquina, não um ser humano.
 
O terceiro preparo é configurar aquela mensagem automática esperta, em parte para avisar quem entrar em contato comigo durante meu período off, em parte para eu me convencer mais um pouco de que o que eu estou fazendo é legítimo.
 
Deixo explícito nas minhas mensagens automáticas de férias que não vou ter acesso a e-mails e que só vou responder depois do dia tal. Funciona como um contrato que eu e o cliente assinamos para manter minhas férias protegidas de intervenções.
 
O quarto preparo é opcional: apagar os aplicativos de trabalho do celular para não me render ao vício de verificar e-mail, Trello, Slack e afins durante a minha folga.
 

Limitar o uso de redes sociais

Sigo repensando minha presença na internet porque tenho consciência do quanto de energia, tempo e atenção disperso nessa arena – digo “arena” porque as redes sociais são projetadas para facilitar entraves, não diálogos.
 
Elas são um colapso de contexto e tempo (tudo, do emissor da mensagem, à imagem, à palavra, pode ser modificado e manipulado em poucos segundos) que esvaziam a possibilidade de deixar ideias marinando para formular um argumento com calma.
 
A aceleração e o imediatismo que as redes retroalimentam transbordam a virtualidade e afetam a nossa noção de tempo, tanto do tempo que temos para viver quanto do tempo que as coisas levam para acontecer.
 
Isso gera aquela sensação esquisita de que estamos vivendo mal, nos intoxicando com informações não solicitadas, já que certas notícias simplesmente param no nosso colo sem que a gente procure deliberadamente por elas.
 
Limitar o uso das redes sociais é mudar a qualidade da minha atenção. Atenção é afeto, energia e tempo; são recursos escassos – o tempo, em particular, é escasso e não renovável.
 

Para além do detox digital

📢 Mais do que preferir não reagir a tudo o que me atravessa virtualmente, me pergunto quanto tempo, atenção e energia gasto com as coisas que me fazem bem. Ou, para parafrasear a historiadora Giovana Xavier, onde eu jogo luz?

 

Realizar atividades analógicas

Antes do boom da conectividade, todo mundo sabia se divertir sem tela-visionar cada momento do dia. Hoje, parece que precisamos de espectadores para validar a nossa vivência.
 
No entanto, em tempos pandêmicos, compartilhar nosso dia a dia também virou um modo de combater o distanciamento. No final das contas, não há certo e errado nessa discussão: há aquilo que faz você se sentir bem em um dado momento.
 
Retomar atividades analógicas, que não precisam de mediação de telas digitais, tem sido a solução que me ajuda a ficar menos borocoxô. São elas:
  • ler livros físicos
  • escrever à mão
  • desenhar e colorir
  • montar quebra-cabeças
  • cuidar de plantas
  • cozinhar
  • fazer faxina
  • comer sentada à mesa sem assistir à TV (menos fadiga visual e menos chances de ter indigestão, convenhamos)
 Por fim, fazer terapia toda semana, meditar e me exercitar regularmente são a cereja desse bolo analógico de viver o meu corpo e a minha mente fora do eixo produtivista.
 

E por falar em insistência...

Voltar a escrever para outras pessoas é uma aposta não lá muito analógica (afinal, você está lendo este texto em alguma tela), mas me suspende o suficiente do frenesi que vivemos e consideramos normal. Escrever com mais substância, com menos jargões e "lacres" é um esforço para manter diálogos assíncronos fora da roda do imediatismo, das conclusões precipitadas, do cancelamento. Recomendo, viu? Tanto que meu primeiro post neste site foi justamente sobre isso – clica no botão abaixo para ler 😉

 

Continue a insistir

Para resumir, meus “dribles” são tentativas:
  • tento absorver esses hábitos no meu dia a dia, sem me castigar caso não consiga
  • tento encorajar outras pessoas a fazer o mesmo (esse texto é um exemplo disso!)
  • crio ambientes de trabalho em equipe que respeitem o tempo das pessoas
  • estudo cada vez mais para decolonizar meu pensamento
  • Trabalho o mínimo de horas necessárias para manter meu sustento, tomar minha cerveja, apoiar as causas que eu acredito e poder fazer umas graças de vez em quando
Essas táticas não são infalíveis; volta e meia tenho recaídas porque a vida é impermanência. O pulo do gato é a insistência: como um compromisso individual que se desdobra no coletivo, insistir todo dia um pouquinho naquilo que me faz sentir melhor, jogando luz nas coisas que têm pulsão de vida e fazem sentido para mim, que se comunicam com a minha verdade.
 
Às vezes é fácil; outras, difícil demais. Dá raiva, mas tenho me acostumado a respirar fundo e ser generosa comigo: nadar contra a correnteza cansa, mas fortalece.

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